Para total apreciação este relatório soará melhor se for lido enquanto
escuta esta canção:
Abro minha correspondência e vejo que enfim chegou o que eu aguardava.
Mais um caso para ser solucionado. Me pedem para efetuar o registro de tudo o
que aconteceu. Apesar de saber que tudo isso acabará por me levar a uma jornada
incerta, o gosto doce do final de semana ainda persiste em minha boca e não
posso fugir de tamanha verdade. Ainda me lembro como se fosse ontem.
Era uma tarde nublada de Janeiro, dia 19, para ser mais exato. Pequenas
gotículas se esparramam e escorrem pelos vidros do IC-DF. Um longo e vazio
corredor espera e sabe que algo está para acontecer. Não tarda muito e chega o
primeiro Doutor Palhaço, senta e espera os demais. Cada qual a seu tempo, ao
ritmo das gotas de chuva que insistem em se espatifar nas janelas.
Ao se encontrarem, dão-se as mãos e proferem uma oração pelo trabalho
que os espera. Mal sabem que aquele dia esconde grandes surpresas. Mais um
longo corredor que pouco antes estava vazio e agora encontra-se cheio de
narizes vermelhos, pés coloridos e uma súbita agitação no fundo do estômago. E
ao final deste corredor, outro corredor, como que num labirinto cheio de
emoções incertas e fantasiosas que se misturam e se perdem nos olhos de cada
palhaço. E as gotas continuam seu salpicar, agora no teto, uma a uma marcando o
tempo que falta para o grande encontro prestes a acontecer.
A porta do elevador se abre, um a um entramos na gélida caixa metálica.
Juquinha, Vagalume, Siri, Venâncio, Smith, Fofuxa, Nana, Risoleta, Jujuba,
Sensa e eu, o Fiote.
Nos dividimos para cumprirmos a nossa tarefa da maneira mais eficiente.
Cada qual em seu devido lugar, como engrenagens movendo uma máquina andarilha
que passo a passo deixa seu rastro sem muito se preocupar em não ser vista.
Chegamos à nossa primeira paciente. Dona Iracema ao notar nossa presença
logo se despede de dois de seus nove filhos. Sim, nove é o numero de sua
extensa prole, um fato que teimou em se repetir ao longa daquela tarde chuvosa.
Enquanto conversávamos com Dona Iracema somos abordados pelo segurança local
que nos solicita que deixemos o recinto devido a ordens superiores. O espanto é
geral. Seria alguém que temia que descobríssemos algum segredo há muito
escondido? Um chiclete grudado em baixo de uma maca? Um pão-de-queijo guardado
a sete chaves? Levanta-se o mistério, porém já chegamos longe demais para
recuar. Doutora Sensa furtivamente se retira e utiliza seus contatos para
contornarmos a situação. Ao que tudo indica seus amigos são muito eficientes e
o segurança é chamado e retorna nos pedindo mil desculpas. Nota mental: Não contrariar
Doutora Sensa. Seguimos então ao próximo.
Sr. Alcir por sua vez nos confidencia ter apenas oito filhos e que mesmo
com tantos descendentes confiara uma importante tarefa a seu genro: ir ao banco
e retirar toda fortuna que lhe pertence. Seu genro, porém falhou e seu Alcir se
viu obrigado a recorrer a antigos contatos que rapidamente colocam tudo em seu
devido lugar. O dinheiro foi devidamente encaminhado. Quanto ao seu genro, não
sabemos o que aconteceu ao pobre rapaz.
Sr. Gutemberg após ser pressionado nos revela sua verdadeira identidade:
Leandro, ladrão de amores, temido por muitos e adorado por muitas. Com sua
lábia impecável e retórica sedutora convence Doutora Nana a se casar com um de
seus filhos. Tudo acertado, apenas a espera do dote.
No total foram 7 os interrogados na UTI Cirúrgica. Os que foram à UTI
Pediátrica relatam um fato curioso. Estavam todos dormindo, todos os 10
pacientes. Ou pelo menos foi isso que nos disseram. Ao sairmos da UTI, noto
muitas risadas e desconfio serem para nós. O mistério se aprofunda e uma forte
coceira não deixa minha orelha sossegada. Seria uma pulga? Era.
Na UCO encontramos 6 pacientes e dentre diversas conversas algo nos
chama atenção. Sr. João nos diz que também possui muitos filhos, 10 para ser
exato e não demora em também arranjar um casamento de um de seus filhos com a
Doutora Risoleta. As peças começam a se encaixar, mas ainda falta muito para
que tudo isso faça sentido de fato.
Recebemos notícias que dentre outros 44 pacientes visitados neste dia
havia um Senhor chamado Valdir que aguardava um implante de CDI. A princípio
ele não queria dizer, mas acabou por confessar que se tratava de "silicone
duplo inflável". Mais um a assumir uma dupla personalidade nesta trama
mais enrolada do que fone de ouvido no fundo do bolso. Havia também o Sr. João
da Cruz que tentou utilizar de sua lábia para que não nos lembrássemos de que
ele na verdade era o Hulk da UTI. Por que tanto mistério, tantas vidas duplas,
tantas pontas duplas?
Talvez a resposta estivesse com um casal que durante toda a tarde ficou
sentado no corredor a namorar. Ao interrogar alguns anônimos que passavam pelo
local descobrimos que recentemente haviam decretado uma nova lei. Uma lei que
seria o grude a dar liga a tantas histórias misteriosas. Sr. Wilson e Dona
Cleuza estavam lá ao final do corredor e mesmo temendo estar atrapalhando o
namoro ousamos interrogá-los e somos informados que a partir daquele dia só era
permitido transitar pelos corredores em pares. Era isso. Minha cabeça rodou e
aos sons dos pingos de chuva na janela me recordei como em flashes dos
corredores vazios, das propostas de casamento e das personalidades duplas. Ao
que tudo indica todos os 67 pacientes queriam apenas poder caminhar pelos
corredores sem contrariar a nova lei do parzinho.
Caso encerrado, voltamos pelos corredores que nos trouxeram. Desfizemos
nossa máscara. Nos despedimos sem comentar o que havia de fato ocorrido.
A fina chuva havia passado e um pequeno sol se espreitava entre as
nuvens.
Entrei no meu carro, liguei o toca-fitas sabendo que muito em breve mais
uma correspondência surgiria com uma nova missão.
Caso encerrado.